13/03/18

O ARCO-ÍRIS


de Abel Neves

A palavrinha austeridade que tanto valor tem, ou pode ter, nas escolhas que fazemos pela vida fora é demasiado nobre para ficar reduzida a um propósito circunstancial de organização política e social e, posteriormente, cristalizada num escombro de resgate económico. A austeridade tem liberdade dentro mas essa é uma outra história. É absurdo que uma pessoa venha a este mundo para que boa parte da riqueza do seu trabalho seja aplicada na salvação de Bancos e de banqueiros. O capitalismo mais esperto sabe que é possível integrar os que o condenam, fingindo acautelar interesses que não sejam apenas os do lucro e desfalecendo até um pouco no usufruto do valor da mais-valia, criando a ilusão de que parte dele se aplica no reforço de bens sociais necessários, entre eles – vamos agora adiantar - os bens culturais. 

Fácil é compreender que depois de uma época, mais ou menos longa, de compressão, trapalhice e canalhice, emerge uma outra, descompressora, irradiando um arco-íris de ponta a ponta na geografia, relembrando - sem instigar ao saque - que há potes de felicidade no horizonte. Uma época seráfica, pois, em contraponto a um calendário de vergonha em que a vida da maioria das pessoas foi violada, se desbarataram e alienaram recursos sob a protecção de um voto democrático maioritário. Sempre se pensa se alguém com poder político - seja quem for com o dever cívico de ter sido eleito para um cargo público - tem o direito de esbanjar património, ou negociar, para proveito privado – seu ou de outrem - uma riqueza que é de todos, mas a pouco e pouco habituámo-nos ao controlo do Estado por parte de quem quer, efectivamente, regular os comportamentos sociais, e regular para melhor controlar. O dinheiro, o poder que dele emana, continua a ser pensado como um sopro quase divino. 

Existe, por isso e simplesmente, uma ideologia a florir no dinheiro. Pode ser contrariada? Em boa hora houve aqui na Lusitânia um conluio político para uma nova e arejada maioria. Um arco-íris talvez pudesse acender-se na paisagem. Novos e inteligentes pensadores e cientistas da economia e das finanças tomaram conta das contas públicas e afins. Parece não haver qualquer dúvida sobre benefícios que estão a ocorrer na vida colectiva, salvaguardas económicas, crescimentos e optimismos. A feliz propaganda da imagem de uma histórica nação europeia a emergir muito positivamente de um resgate – patrocinado antes por agiotas e vendilhões - um país pacífico e empreendedor, repleto de simpatia e de belezas naturais acessíveis, não distante dessa outra imagem de marca que foi a do "país à beira-mar plantado", gastronomicamente imbatível, pronto a receber qualquer cidadão do mundo depois da triste e desonrosa partida de milhares de qualificados emigrantes, alargou muitíssimo o panorama das possibilidades de evolução e riqueza económica e de desenvolvimento social. Exportações bem sucedidas, e outras que se aguardam, investimentos, muita disciplina social e, sobretudo, o Turismo, vão dando luz e água ao arco-íris. No entanto, ainda que o fenómeno esteja aceso e alguns tentem esbater muitíssimo as suas cores, existe, aquém dos horizontes e além de nós, mas fabricado por uns tantos que se pretendem ocultos por aí, um espectro ideológico. 

E é por agora que a pintura fica borrada porque se a vida faz sentido é com os fenómenos de Cultura e no que diz respeito aos fenómenos de Cultura, a esquerda política actualmente no poder tinha a superior obrigação de ser radicalmente diferente, obviamente para melhor, dos precedentes gestores e funcionários de libré, e mostrar, revelando ideologicamente, que as economias existem porque assim o determina a Cultura. É a Cultura que obriga à existência da economia e não o contrário. Um simples acto de manipular os dígitos numa operação financeira é um acto cultural, de visibilidade quase oculta, mas cultural. O idílico ócio sonhado com o dinheiro não é mais que um aparato também ele de raiz cultural. Por muito que queiram impor-se na vidinha de todos, as descargas sociais da economia nunca terão a grandeza da Arte ou do pensamento filosófico ou religioso. 

Os sistemas económicos vão regendo os artifícios, os mecanismos, é certo, mas a arte e o pensamento dirigem a vida. Então, depois desta borrada nalguma linhas, o que venho aqui dizer? Que é uma vergonha o que se está a passar com a contribuição do governo – que deveria ser uma obrigação de Estado – para com as necessidades de desenvolvimento estrutural das diversas instituições culturais que vêm desempenhando o seu trabalho desde sempre. Há muita realidade desagradável, infeliz, oculta atrás da cortina com que se abrem e fecham os espectáculos artísticos, e em particular os propriamente designados "de teatro", mas não vale a pena sequer pensar que o teatro acabará porque os gregos não o inventaram para que uns quaisquer bichos-caretos o tentem amesquinhar uns séculos adiante, mas também não é porque sabemos que jamais acabará que podemos negligenciar as responsabilidades que nos cabem na defesa da sua evolução e respeito pelo esforço de todos os que aqui vieram antes de nós. 

Para um dramaturgo que sobrevive do acto teatral e dele não pode estar alheado – esperando até ainda que um dia Almeida Garret seja nomeado director do teatro que fundou – a sua expectativa quanto ao respeito que a arte dramática deve merecer dos governos é certamente equivalente à dos outros contribuintes artísticos, dos técnicos aos comediantes. Em legislaturas anteriores, quando as cabecinhas pensadoras decidiram que a Cultura não era merecedora de estatuto ministerial na representatividade governativa, o Carmo e a Trindade foram caindo aos poucochinhos e as actividades culturais lá se viram no constrangimento vergonhoso, mas, claro, tradicional, e se é tradicional num país amigo das tradições a coisa parece que é para valer. Recentemente, o arco-íris deu em subir novamente a categoria e a Cultura virou Ministério e o que estamos todos à espera de saber é a diferença que anda a fazer o dito cujo na relação que se desejaria, no mínimo, saudável com quem se dedica à vida cultural e para que a tal Cultura tenha a luminosidade que se exige, e já agora a responsabilidade, e para a qual – na sua criação e defesa - todos somos, e bem, sistematicamente examinados e avaliados, embora, também sistematicamente, se menorize, a graus que roçam o desrespeito, o trabalho intenso, devotado e qualificado das gentes das artes. 

Não é demais reafirmar que as obrigações constitucionais do Estado para com as actividades culturais não podem depender dos caprichos de um qualquer governo e, sobretudo, devem ser pensadas não como um frete a uns tantos vocacionados, mas como um necessário investimento, valorizando o património e os recursos, garantindo a validade do que já fez e dos que ainda estão, e a qualidade dos que hão-de vir. Um Ministério da Cultura não pode existir apenas porque se diz que existe. É menos que zero se assim for, ou talvez exista como a célebre faca surrealista, sem cabo e sem lâmina. A indesculpável situação criada em volta dos atrasos no apoio às actividades culturais, nomeadamente, teatrais, faz pensar que não há inocência. Há, sim, ideologia. E as ideologias nefastas devem combater-se. E fica bem relembrar o que, então em plena segunda guerra mundial, Winston Churchill, conservador, terá dito a um responsável do governo quando este sugeriu fazer cortes orçamentais no universo da cultura atendendo ao esforço que era necessário fazer por causa da guerra: “Nem pense! – disse o estadista -Então estamos a fazer esta guerra para quê?” Há exemplos que vão alimentando as cores do arco-íris. 

Senhoras e senhores do Ministério da Cultura, falem, digam qualquer coisinha, mexam-se. O que vamos sabendo, publicamente, pelos jornais – e, claro, não se deseja a ninguém - é que o Senhor Ministro teve a infelicidade da sua casa ter sido assaltada. Mais não sabemos, e é muitíssimo pouco. Há males que ficam feitos e uma coisa é certa: se estão a pensar em eleições é bom que pensem que há votinhos que se perdem e que podem decidir muita coisa, mas o problema nem está no votinho: no seu atavismo congénito, o país continua adiado, meio abúlico, afogando-se, mais ou menos iludido, nas ondas avassaladoras do turismo dos ovos-de-ouro. Nas suas paisagens de sedutores litorais – também pasto de startups - ressoam, além do cacarejar das galinhas poedeiras, os discursos bonitinhos para inglês ver, enaltecendo índices económicos, números de crescimento – para o qual, sempre querem fazer esquecer, a Cultura tem acentuado valor – e, aqui e ali, convocando os catedráticos do empreendedorismo mas esquecendo os que trabalham no húmus e mantêm vivo o lume. 

Austeridade, pois, mas por inteligência, devoção e livre vontade, não por martelada nas consciências e por mão alheia, canalha. O teatro sempre cumpre os seus desígnios. De uma vez por todas, deixem-se de poses seráficas e cumpram, vossas excelências, as vossas obrigações.

Foto de Abel Neves.
 "A cigarra e a formiga" - água-forte, Dominique Sornique e Jean-Baptiste Oudry (séc. XVIII)

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